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Vidas em risco: a identidade profissional dos bombeiros militares

Lives at risk: the professional identity of the military firemen

Resumos

Este artigo discute a configuração da identidade profissional do Bombeiro Militar da região da grande Florianópolis, SC. Para contemplar tal objetivo geral, os objetivos específicos e o referencial teórico enfocaram: caracterização da profissão, identidade, trabalho, escolha profissional e qualidade de vida. Quanto ao método, a pesquisa definiu-se como exploratória e descritiva, delineada como um levantamento. Utilizou-se um questionário semi-aberto. Analisaram-se os dados quantitativa e qualitativamente. Participaram da pesquisa 266 Praças do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros. Por meio desta pesquisa, foi possível concluir que esses profissionais sentem-se realizados com sua profissão, muito embora possuam queixas, as quais não são sobre o conteúdo da profissão, mas sim sobre falta de condições para exercê-la e sobre aspectos organizacionais. Esses sujeitos "vivem" a profissão mesmo fora do seu horário de trabalho. Também foi possível verificar que, assim como as teorias afirmam, o trabalho é um fator constituinte da identidade do sujeito.

identidade profissional; bombeiros militares; trabalho; qualidade de vida


This article discourses the configuration of the professional identity of the Military Firemen from the region of the Greater Florianópolis, SC. To contemplate such general objective, the specific objectives and the theoretical referencial focused on: characterization of the profession, identity, work, professional choice and quality of life. As method, the research was defined as exploratory and descriptive, delineated as a survey. An half-open questionnaire was used. The data was analyzed in a qualitative and quantitative form. Participated in the research, 266 "praças" of the 1st Firemen Battalion. With this research, it was possible to conclude that these professionals feel themselves carried through with their profession although complaints exist, which are not on the content of the profession, but on the lack of conditions to fulfil it and on organizacional aspects. These citizens "live" the profession even outside their working hours. It was also possible to verify that, as well as the theories affirm, the work is a constituent factor of the identity of the citizen.

professional identity; military firemen; work; quality of life


Vidas em risco: a identidade profissional dos bombeiros militares

Lives at risk: the professional identity of the military firemen

Michelle Regina da Natividade

Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, Brasil

RESUMO

Este artigo discute a configuração da identidade profissional do Bombeiro Militar da região da grande Florianópolis, SC. Para contemplar tal objetivo geral, os objetivos específicos e o referencial teórico enfocaram: caracterização da profissão, identidade, trabalho, escolha profissional e qualidade de vida. Quanto ao método, a pesquisa definiu-se como exploratória e descritiva, delineada como um levantamento. Utilizou-se um questionário semi-aberto. Analisaram-se os dados quantitativa e qualitativamente. Participaram da pesquisa 266 Praças do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros. Por meio desta pesquisa, foi possível concluir que esses profissionais sentem-se realizados com sua profissão, muito embora possuam queixas, as quais não são sobre o conteúdo da profissão, mas sim sobre falta de condições para exercê-la e sobre aspectos organizacionais. Esses sujeitos "vivem" a profissão mesmo fora do seu horário de trabalho. Também foi possível verificar que, assim como as teorias afirmam, o trabalho é um fator constituinte da identidade do sujeito.

Palavras-chave: identidade profissional; bombeiros militares; trabalho; qualidade de vida.

ABSTRACT

This article discourses the configuration of the professional identity of the Military Firemen from the region of the Greater Florianópolis, SC. To contemplate such general objective, the specific objectives and the theoretical referencial focused on: characterization of the profession, identity, work, professional choice and quality of life. As method, the research was defined as exploratory and descriptive, delineated as a survey. An half-open questionnaire was used. The data was analyzed in a qualitative and quantitative form. Participated in the research, 266 "praças" of the 1st Firemen Battalion. With this research, it was possible to conclude that these professionals feel themselves carried through with their profession although complaints exist, which are not on the content of the profession, but on the lack of conditions to fulfil it and on organizacional aspects. These citizens "live" the profession even outside their working hours. It was also possible to verify that, as well as the theories affirm, the work is a constituent factor of the identity of the citizen.

Keywords: professional identity; military firemen; work; quality of life.

Introdução

Este artigo é um relato de pesquisa sobre a identidade profissional do Bombeiro Militar da região da grande Florianópolis, SC. Para contemplar tal objetivo geral, os objetivos específicos pretenderam levantar dados sobre: caracterização da profissão; características fundamentais da vida pessoal e social do Bombeiro Militar; escolha profissional; autopercepção sobre a profissão; dificuldades na atuação profissional; entendimento sobre qualidade de vida e relações percebidas entre atividade profissional e qualidade de vida.

Para iniciar tal discussão, precisa-se compreender como surgiu essa profissão no Estado de Santa Catarina, seu desenvolvimento e suas especificações, bem como apresentar alguns apontamentos teóricos sobre o tema identidade.

O profissional Bombeiro Militar, no exercício da sua atividade profissional, coloca sua vida em risco para salvar a vida de terceiros e/ou para defender bens públicos e privados da sociedade. O risco é inerente a essa atividade profissional e, segundo o Estado Maior das Forças Armadas, "O exercício da atividade militar, por natureza, exige o comprometimento da própria vida" (Brasil, 1995, p.11). Mas quem é este profissional Bombeiro Militar que possui uma atividade considerada perigosa e que coloca sua vida em risco para salvar a de outros?

Ao se pesquisar sobre a palavra bombeiro e sobre a organização do Corpo de Bombeiros, verifica-se que seus primórdios são bastante antigos. De acordo com Campos (1999), a palavra bombeiro tem origem no latim, significando bomba (bombus), visto que, na Antiguidade, os incêndios eram controlados através de bombas de água. Em relação ao combate aos incêndios, os registros remontam à Grécia antiga (300 a.C.), quando a atividade era realizada por escravos. Já em relação ao Corpo de Bombeiros, seu primeiro registro data de 27 a.C., em Roma, onde era denominado "cohortes vigilium", no Reinado de César Augusto, contando com cerca de sete mil homens (Fundação Universidade do Contestado, 1999).

De acordo com Fundação Universidade do Contestado (1999), no Brasil, o primeiro registro se dá em 1763, onde, por ordem do Conde da Cunha, foi instituída a primeira Guarda de combate ao Fogo, atividade esta que era realizada pelo Arsenal de Marinha do Brasil. Porém, a criação de uma organização específica para tal atividade, só aconteceu em 2 de julho de 1856, através do decreto imperial n.º 755, onde fora criado o Corpo de Bombeiros provisórios da corte. Em Santa Catarina, segundo o Corpo de Bombeiros de Santa Catarina (1999, p.15):

Em 16 de setembro de 1919, foi sancionada pelo então governador do Estado, Dr. Hercílio Luz, a Lei n. 1288, que criava a Seção de Bombeiros, constituída de elementos da Força Pública. No entanto, somente sete anos depois, deu-se a real instalação da Unidade.

Dessa forma, o marco da criação do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina foi oficialmente em 26 de setembro de 1926, sendo chamado de Seção de Bombeiros (Fundação Universidade do Contestado, 1999; Regis, Marinho, Cordeiro, Lima, & Juvenal, s.d.), contando com um efetivo de 27 praças. A corporação foi acompanhando as transformações históricas de nossa sociedade e atualmente conta com um efetivo de mais de 4 mil militares (Santa Catarina, 2004), distribuídos em todo o território estadual1 1 É importante ressaltar que na ocasião da realização da pesquisa o Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina era vinculado à Polícia Militar. A partir de 2003, com a Emenda Constitucional n. 033 (Santa Catarina, 2003), o Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina passa a ser considerado uma organização independente e, junto da Polícia Militar, a constituir o grupo de Militares Estaduais. .

Também se deve considerar que a discussão sobre a segurança pública é um tema bastante discutido na sociedade do século XXI, pois a violência nas grandes cidades vem crescendo assustadoramente e, com isso, a preocupação com a segurança pública e a mobilização dos cidadãos em encontrar maneiras para tentar se proteger. De acordo com a Constituição Federal Brasileira (Brasil, 1998), o Corpo de Bombeiros também é considerado órgão de segurança pública, embora realize atividades diferenciadas dos Policiais, conforme art. 144, § 5º: "Às Polícias Militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos Corpos de Bombeiros Militares além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.".

Em relação à Constituição do Estado de Santa Catarina, de acordo com o artigo 108 (Santa Catarina, 2003, pp. 2-3), o Corpo de Bombeiros possui mais especificamente as seguintes incumbências:

I) realizar os serviços de prevenção de sinistros ou catástrofes, de combate a incêndio, de busca e salvamento de pessoas e bens e o atendimento pré-hospitalar;

II) estabelecer normas relativas à segurança das pessoas e de seus bens contra incêndio, catástrofe ou produtos perigosos;

III) analisar, previamente, os projetos de segurança contra incêndio em edificações, contra sinistros em áreas de risco e de armazenagem, manipulação e transporte de produtos perigosos, acompanhar e fiscalizar sua execução e impor sanções administrativas estabelecidas em lei.

IV) realizar perícias de incêndio e de áreas sinistradas no limite de sua competência;

V) colaborar com os órgãos da defesa civil;

VI) exercer a polícia judiciária militar, nos termos de lei federal;

VII) estabelecer a prevenção balneária por salva-vidas; e

VIII) prevenir acidentes e incêndios na orla marítima e fluvial.2 2 Na ocasião da pesquisa, o artigo 107, inciso II, da Lei em vigor definia as seguintes atribuições: "a) realizar os serviços de prevenção de sinistros, de combate a incêndio e de busca e salvamento de pessoas e bens; b) analisar, previamente, os projetos de segurança contra incêndio em edificações e contra sinistros em áreas de risco, acompanhar e fiscalizar sua execução e impor sanções administrativas estabelecidas em lei." (Santa Catarina, 1997, p. 102).

Já, conforme o artigo 29 da Lei n. 6.217 (Santa Catarina, 1983, p. 6):

O Comando do Corpo de Bombeiros é o órgão responsável pela extinção de incêndios, proteção e salvamento de vidas e materiais em casos de sinistros, a quem compete planejar, programar, organizar e controlar a execução de todas as missões que lhe são peculiares, desenvolvidas pelas unidades operacionais subordinadas.

Percebem-se, nas definições do fazer profissional do Bombeiro Militar, relatos de atividades perigosas, em que muitas vezes a vida do sujeito é colocada em risco durante sua atuação. Para ingressar na Corporação o sujeito deverá ser classificado em concurso público e posteriormente ser aprovado no Curso de Formação de Soldado (Santa Catarina, 2006), o qual ocorre em regime de semi-internato, com duração aproximada de oito meses. A partir disso, será incluso no efetivo do Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina, organização pautada nos preceitos da hierarquia e da disciplina.

Tendo apresentado aspectos da profissão de Bombeiro Militar, a qual será analisada neste artigo, é também conveniente realizar apontamentos teóricos sobre o tema identidade. Ao se falar sobre identidade, normalmente remete-se à pergunta "quem sou eu?"; porém essa pergunta não se responde a partir de um aspecto, por exemplo, "eu sou João"3 3 Isto porque, segundo Jacques, "O nome próprio é uma representação da identidade precocemente adquirida a partir da forma como os outros nos chamam, e, portanto, pelo seu caráter restritivo não dá conta da identidade" (2001, p. 165). Segundo Ciampa, o nome próprio indica a singularidade do sujeito. "nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam" (1997, p. 63), ou seja, precisa-se do outro na constituição da identidade. , mas sim a partir da interação de vários aspectos deste sujeito: "eu sou João, filho de Maria, trabalho como carpinteiro etc.", ou seja, da interação dos vários papéis que o sujeito representa em seu meio social. Contudo, esse sujeito não nasce representando vários papéis, ele os assume no decorrer de seu desenvolvimento, à medida que se relaciona com seu meio social. Mas como acontece isso? A forma de explicar este desenvolvimento e a formação da identidade é muito ampla e possui diferentes concepções, pautadas em diferentes abordagens epistemológicas e nas diferentes compreensões sobre o ser humano. Esta pesquisa se pauta na perspectiva sócio-histórica, compreendendo que no decorrer do desenvolvimento aumenta-se a rede de relações do sujeito e, neste processo, constitui-se dialeticamente a identidade.

A identidade se constrói e reconstrói no decorrer da vida do sujeito, no decorrer das mudanças em suas relações interpessoais, isto porque as relações e os meios sociais também vão se alterando. Dessa forma, este processo de construção e reconstrução ocorre sempre de forma diferenciada, por isso Ciampa (1997) chama esse processo de "metamorfose".

Ao nascer, o sujeito necessita muito do outro, ou seja, algumas pessoas serão responsáveis por sua sobrevivência, pois ele precisará receber comida, cuidados físicos, afeto etc., e então se pergunta: 'quem é este sujeito?'. Nesse momento, esse sujeito está iniciando suas interações com seu meio social, e provavelmente é definido por um nome e por uma filiação – essa é sua identidade. Com isso, percebe-se que inicialmente a identidade é apenas uma atribuição objetiva imposta externamente, ou seja, inicialmente nos definimos pela forma com que os outros nos chamam, pelos atributos que os outros nos colocam. Esses atributos iniciais são chamados por Ciampa (1997) de identidade pressuposta, e por Martin-Baró (1985) de identidade objetivamente atribuída. No decorrer do desenvolvimento, o sujeito vai se apropriando e significando esses atributos, vai admitindo ou não ser aquilo que os outros dizem que ele é; isso é chamado por Ciampa (1997) de identidade re-posta e por Martin-Baró (1985) de identidade subjetivamente apropriada. Esse aspecto subjetivo é a imagem pessoal que o sujeito tem de si. Contudo, a identidade não se reduz a isso, pois também se deve considerar como os outros me percebem e como eu percebo que os outros me percebem4 4 Considerando esse posicionamento, esta pesquisa não investigou a faceta "como os outros me percebem", ou seja, não se investigou a significação de outros sujeitos sobre esse profissional Bombeiro Militar. . É importante enfocar que essa identidade pressuposta que é re-posta cotidianamente não é estanque e imutável, o sujeito vai reatualizando esses atributos de acordo com sua significação do meio social.

Autores como Martin-Baró (1985), Ciampa (1997), Sawaia (2001), Silva (2000) e Jacques (2001) relatam as aparentes dicotomias no estudo da identidade, ou seja, ao mesmo tempo em que a identidade é transformação, é também permanência, é multiplicidade e também unicidade, é igualdade e também diferença, é individual e também social; porém todos os autores concordam no sentido de que a identidade é uma totalidade, por isso essas aparentes dicotomias na realidade não o são, pois uma concepção não exclui a outra.

A partir da totalidade da identidade de um sujeito, em que em cada interação o sujeito pode apresentar uma faceta dessa totalidade e da diversidade de papéis sociais que esse representa em seu meio social, buscar-se-á nesta pesquisa a compreensão da identidade no âmbito profissional. Compreendendo que o sujeito se contitui nas relações que estabele com seu meio e que "as organizações onde se fundamentam e se desenvolvem as atividades profissionais constituem um espaço privilegiado na formação destas identidades" (Natividade & Brasil, 2006, p. 39), o intuito deste artigo é discutir sobre a identidade profissional do Bombeiro Militar.

Método

A pesquisa foi caracterizada como um estudo exploratório e descritivo. Em seu delineamento, constitui-se em um levantamento, pois foi realizado um questionamento direto à população investigada com o intuito de obter informações acerca do problema de pesquisa.

Definiram-se dois critérios de seleção dos participantes. O primeiro foi em relação à delimitação das Organizações de Bombeiro Militar (OBM) da região da grande Florinanópolis; sendo assim, a pesquisa teve como local de realização as unidades operacionais da 1ª e 2ª Companhia do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros. O segundo critério foi a delimitação para a participação somente dos praças, ou seja, soldados, cabos, sargentos e subtenentes, que trabalham nessas unidades operacionais. Com essa delimitação, a população da pesquisa, de acordo com estatística interna disponibilizada pelo Comando do Corpo de Bombeiros (CCB), totalizou 391 praças. Tomando-se esse número como base e seguindo procedimentos estatísticos, a amostra da população foi selecionada, com uma margem de erro estabelecida em 3%5 5 Esta margem de erro permitiu que nas conclusões os resultados da pesquisa fossem generalizados a toda a população. e nível de confiança de 95%, totalizando 289 sujeitos. Contudo, devido a afastamentos, férias e outras situações internas, não foi possível alcançar esse número, ficando a amostra composta por 266 sujeitos.

O instrumento de coleta de dados utilizado foi o questionário semiaberto, com 24 questões6 6 As pesquisas de Vieira (1997), Campos (1999) e Alegria (1999/2000) contribuíram para a elaboração do questionário. . Em cada OBM foi necessário realizar duas visitas, as quais foram sempre iniciadas às 8 horas da manhã, visto que é nesse horário que ocorre a troca de guarnição (troca de turno). Cada OBM apresentou sua especificidade: em algumas, a aplicação foi realizada em sala de aula, com grupos de 20 a 40 sujeitos; em outras, a aplicação foi em pequenas salas com grupos de aproximadamente 10 sujeitos. No geral buscou-se, antes dos sujeitos iniciarem o preenchimento do questionário, explicar os objetivos da pesquisa e as questões éticas, ou seja, que seria mantido o anonimato dos sujeitos e o sigilo das informações. Todavia, em algumas OBM os sujeitos chegavam ao local quase que individualmente; dessa forma, essas instruções não foram coletivas.

A partir dos questionários, obtiveram-se dados objetivos, que foram analisados de forma quantitativa através de estatística de dados, gráficos e tabelas, e de forma qualitativa, com a análise do conteúdo das questões abertas e através da relação dos dados objetivos com os fundamentos teóricos.

Apresentação e análise dos dados

A apresentação e análise dos dados foram subdivididas conforme os objetivos específicos propostos na pesquisa; em cada subdivisão as questões dos questionários foram agrupadas conforme a pertinência ao tema em análise.

Caracterização Geral da População

As dez primeiras questões do questionário foram referentes à caracterização geral da população. Com estes dados, foi possível visualizar quem é hoje o Bombeiro Militar na região da grande Florianópolis.

Dos 266 sujeitos de pesquisa, 66,2% são soldados. Constatou-se que, quanto mais elevado o grau na hierarquia, menos trabalho operacional o sujeito exerce, passando a executar atividades mais burocráticas; dessa forma, estes sujeitos tinham maior dificuldade de se ausentar do setor para o preenchimento do questionário. A partir dessa constatação, concluiu-se que a hierarquia define de certa forma a atividade que o sujeito exerce.

A coleta de dados demonstrou que 29% já trabalham como militares entre 10 e 15 anos e 26,3% entre 15 e 20 anos; nenhum dos sujeitos trabalha há menos de 5 anos como militar. Portanto, a maioria (55,3%) desses sujeitos já trabalha como militar entre 10 e 20 anos, o que demonstra que já possuem bastante conhecimento em sua profissão. Eles possuem uma estabilidade no emprego; são funcionários públicos, pois o Corpo de Bombeiros é um órgão de segurança pública, subordinado ao Governo do Estado. Em relação à questão da estabilidade, Pena & Moraes (1998) afirmam que a estabilidade é uma das estratégias de dominação, que utiliza-se de recompensa simbólica para poder dominar subjetivamente os trabalhadores. Esta dominação subjetiva faz com que os trabalhadores tenham a mesma forma de ser e de pensar, ou seja, que realmente "vistam a camisa". Nas conversas informais durante a aplicação dos questionários, foi possível perceber que a maioria tem muito orgulho da profissão que exerce e gosta das atividades que realiza. Assim sendo, pode-se fazer um paralelo com que os autores afirmam. Por outro lado, também é possível avaliar a estabilidade como um fator valorizado no contexto contemporâneo, uma vez que, segundo Antunes (2003) e Kovács (2004), atualmente há uma crescente diferenciação e heterogeneidade das situações de trabalho e formas de emprego, as quais trazem consigo, dentre outros fatores, a diminuição de direitos dos trabalhadores.

A idade dos sujeitos variou de 26 a 50 anos, sendo que a faixa etária predominante (10,2%) ficou entre 36 a 40 anos.

Se a idade dos sujeitos ficou entre 26 e 50 anos e a maioria trabalha entre 10 e 20 anos como militar, pode-se pensar que alguns podem estar há um terço de suas vidas trabalhando nessa profissão. Um terço de suas vidas em que são identificados por um "nome de guerra", que seria como um apelido profissional, dando ao sujeito uma identidade organizacional, que o distingue dos outros7 7 Dá uma identidade no sentido de que fornece uma singularidade, e não que represente toda sua identidade, conforme Martin-Baró (1985), Jacques (2001) e Ciampa (1997). . Tantos anos sendo chamados por esse "nome de guerra", isto com certeza é um fator que influencia na construção da identidade destes sujeitos. Inicialmente, esse "nome de guerra" foi uma atribuição objetiva imposta externamente, pois o sujeito entra na corporação e alguém lhe atribui este nome. Esse atributo inicial é sua identidade pressuposta (Ciampa, 1997) ou identidade objetivamente atribuída (Martin-Baró, 1985). Conforme o tempo foi passando, o sujeito foi se apropriando desse nome e passou a admitir ser chamado assim, ou seja, essa é a identidade re-posta (Ciampa, 1997) ou identidade subjetivamente apropriada (Martin-Baró, 1985).

Os Bombeiros Militares na região da grande Florianópolis, hoje, em sua maioria, são casados (82,3%) e com filhos (88%), sendo que 41,8% possuem dois filhos. Percebe-se que não há um grande deslocamento dos sujeitos de sua cidade de origem, visto que a grande maioria (62,3%) é natural de Florianópolis. Contudo, nos resultados aparecem cidades de todas as regiões de Santa Catarina, e inclusive algumas de outros estados.

Em relação à escolaridade, 55,1% possuem o Ensino Médio completo, e apenas 8,7% estão estudando. Atualmente, para ingressar no Corpo de Bombeiro Militar do Estado de Santa Catarina é necessário ter o Ensino Médio completo; assim, a maioria cumpre essa exigência. Todavia, 34,9% dos sujeitos possuem escolaridade inferior ao Ensino Médio completo.

As atividades apontadas como sendo as mais realizadas pelos sujeitos de pesquisa foram a extinção (atendimento) de incêndios, atendimento a situação de calamidade ou emergência pública, busca e salvamento de pessoas e bens, atendimento pré-hospitalar (ambulância) e serviço de prevenção nas praias (postos salva-vidas). Essas atividades8 8 O atendimento pré-hospitalar não está bem definido na Constituição do Estado de Santa Catarina; já na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, 2002), este item aparece como função dos sargentos e subtenentes do corpo de bombeiros militar. são previstas de acordo com a Constituição do Estado de Santa Catarina (1997), com a Lei de Organização Básica da PMSC (Santa Catarina, 1983) e com a Classificação Brasileira de Ocupações (2002)9 9 As definições das atividades dos Bombeiros Militares por meio da Classificação Brasileira de Ocupações só foram inseridas na pesquisa após a aplicação dos questionários, visto que a edição anterior da CBO não incluía a descrição de profissões militares. .

As atividades que os sujeitos de pesquisa consideraram como não sendo funções dos Bombeiros Militares também não estão classificadas nas definições legais nem na Classificação Brasileira de Ocupações. Os itens mais assinalados foram: acompanhamento de pessoas públicas ou famosas, manutenção do ambiente de trabalho (carpintaria, eletricidade, faxinas, etc.), recolhimento de animais em situações de risco e retirada de animais perigosos de lugares públicos e atividades burocráticas (serviço de protocolo, relatórios, etc.).

Características Fundamentais da Vida Pessoal e Social

Dentre as atividades que são realizadas com mais frequência na vida pessoal e social, as duas atividades que tiveram maiores índices envolvem a família. Percebe-se, então, que a família é um fator importante na vida desses sujeitos. É importante lembrar que é na família que ocorre a socialização primária, ou seja, é através dela que o sujeito terá seu primeiro contato com o mundo social, a partir do qual vai estruturar seus valores e conhecimentos.

Os itens com atividades mais voltadas ao âmbito cultural, como cinema, estudar e viajar, tiveram um índice baixo; inclusive o item ir ao teatro não foi assinalado por nenhum sujeito. Pode-se inferir que isso pode estar relacionado à insatisfação apontada em outra pergunta do questionário, referente à remuneração recebida.

A grande maioria dos sujeitos de pesquisa considera que sua família aprova sua escolha profissional e que a população civil tem uma boa imagem de sua profissão. De acordo com categorias estabelecidas para análise, consideram que são percebidos pela população civil como "profissionais que estão sempre prontos a atender", "educados", "profissionais úteis na sociedade" e também como "heróis". Provavelmente consideram que a população os vê assim por também se perceberem dessa forma. Esses dados são bastante importantes, pois é através do reconhecimento e da diferenciação do outro que se pode construir o próprio eu, ou seja, essa imagem contribuiu para a formação da identidade profissional desses sujeitos. Na construção da identidade é necessário que o próprio sujeito se reconheça no papel que exerce, como igualmente perceber que o outro também lhe reconhece nesse papel. Esse outro é o responsável por confirmar o papel que o sujeito exerce em suas relações.

Percepção Sobre a Escolha Profissional

Em relação aos fatores que influenciaram a escolha profissional, destacaram-se os itens relacionados ao conteúdo da profissão: "atender e ajudar as pessoas", "gostar da vida militar" e "sempre quis ser bombeiro (sonho de criança)".

A maioria dos sujeitos afirmou que, se pudesse voltar atrás, faria esta opção profissional novamente. Dessa forma, pode-se concluir que, embora possam existir dificuldades na organização ou durante a execução de sua atividade, os sujeitos se realizam em sua profissão devido à atividade em si, ao conteúdo da profissão. Isso também foi possível de ser percebido durante a aplicação dos questionários, pois vários sujeitos comentavam que se não gostassem tanto da atividade que exerciam não continuariam trabalhando como Bombeiro Militar; demonstravam orgulho e realização com sua atividade profissional, muito embora apresentassem reclamações da organização e das condições de serviço.

Autopercepção Sobre a Profissão

Os sujeitos de pesquisa consideram que possuem uma atividade profissional perigosa e estressante, possuindo um grau de perigo alto. Contudo, quando questionados sobre o que sentem durante a ocorrência, os itens com maiores índices foram: "satisfação", "sentimento do dever cumprido" e "competência". Isso confirma o que já foi dito, ou seja, embora existam dificuldades, realizam-se com sua profissão.

O risco na profissão de Bombeiro Militar é inerente a sua atividade, e é citado no juramento de ingresso e nas leis que definem suas obrigações. Supõe-se que os sujeitos acabam se "habituando" ao risco, pois os sentimentos durante as ocorrências que tiveram índices mais altos no questionário foram de itens positivos.

Embora tenham citado itens positivos sentidos durante as ocorrências, o risco é iminente, muitas vezes sentido objetivamente e, em alguns casos, podem, segundo Itani (1998), representar situações-limite para o sujeito. Caldas Silva (2000) afirma que, em relação às "profissões de risco", o medo e as defesas sobre conflitos existentes se acentuam, todavia no questionário aplicado o item medo apresentou um dos menores índices (10,3%), enquanto o item satisfação apresentou o maior índice (87,1%).

Dificuldades na Atuação Profissional

Através da aplicação dos questionários foi possível constatar que normalmente são realizadas discussões sobre as ocorrências, e que na maioria das vezes elas são realizadas com os próprios companheiros que foram atender o sinistro. Porém, os sujeitos apontaram a necessidade de se realizar alguma atividade frequente para realizar essas discussões. Dessa forma, pressupõe-se que a conversa informal com os colegas de trabalho que ocorre atualmente não é suficiente.

Dentre as sugestões das possíveis atividades que poderiam ser realizadas, foram elaboradas categorias para a apresentação das mesmas, as quais foram relacionadas com: realização de debates com os próprios colegas de guarnição ou com oficiais (42,2%); solicitação de um apoio com profissionais, que na maioria das vezes foi apontado como sendo o psicólogo (18,9%); a realização de treinamentos, cursos, participação dos oficiais e mais organização dentro da instituição (10,6%); não sugerem uma atividade específica, mas pontuam a necessidade de discutir as ocorrências para que os erros possam ser corrigidos e sua atuação melhorada (7,2%); a falta de materiais para execução das atividades (3,3%); possibilidade de filmar as ocorrências com o intuito de verificar os erros e acertos e poder aprender mais, agilizar o atendimento e aperfeiçoar a atividade profissional (3,3%) e, por último, foram agrupadas as respostas abrangentes e imprecisas (13,9%).

Em relação à sugestão dos sujeitos de pesquisa de ter um apoio profissional para discutir as ocorrências, foi possível inferir que as respostas sugerem que a solicitação de ter um apoio, principalmente psicológico, não se dá somente pela necessidade profissional, mas também para que sua profissão não venha a afetar sua vida num contexto geral, provocando, por exemplo, estresse, problema bastante citado pelos sujeitos.

Um outro aspecto apontado pelos Praças do Corpo de Bombeiros de maneira recorrente foi a questão de cometer erros. Pode-se supor que isso está relacionado à ideia de que eles não podem errar.

Entendimento Sobre Qualidade de Vida

Em relação à qualidade de vida, os itens com maiores índices foram "viver bem com sua família" e "boas condições físicas no ambiente de trabalho". Nisso percebe-se que qualidade de vida deve ser analisada em toda a abrangência da vida do sujeito, e não só enfocando aspectos de âmbito profissional, por exemplo. Sendo assim, a realidade condiz com as teorias que afirmam a necessidade desta interação (Dejours, 1999; Patricio, Casagrande, & Araújo, 1999; Rodrigues, 1999), pois todos são fenômenos interdependentes, já que o sujeito é compreendido enquanto uma totalidade.

Relações Entre a Atividade Profissional e a Qualidade de Vida

Em uma questão do questionário, foram apresentados vários itens relacionados à atividade profissional para verificar se, em um contexto geral, os sujeitos de pesquisa sentem-se satisfeitos com sua profissão. 72,2% dos itens foram considerados satisfatórios para os sujeitos de pesquisa, dentre eles: "imagem do profissional Bombeiro Militar para a sociedade", "relacionamento com colegas de trabalho" e "ter uma especialidade dentro da profissão de Bombeiro Militar". Pode-se relacionar esse resultado à concepção de Ciampa (1997), onde se compreende que a identidade vai se constituindo a partir dos grupos sociais dos quais fazemos parte, mas admite que não basta fazer parte de um grupo, o sujeito precisa se identificar com ele; por exemplo, um sujeito faz parte de um grupo de pescadores, portanto é pescador. Isso é um erro, pois essa ideia considera que há uma identidade de pescador antes da ação de pescar. Por isso, Ciampa afirma que é pelo agir que nos tornamos algo, e por isso a resposta da pergunta "quem sou eu?" simplesmente "capta o aspecto representacional da noção de identidade (enquanto produto), mas deixa de lado seus aspectos constitutivo, de produção, bem como as implicações recíprocas destes dois aspectos." (1997, p. 65). Aspecto representacional, no sentido do atributo externo, identidade pressuposta; é o modo como o sujeito se mostra e como ele é percebido pelo outro. Pode-se perceber, pelas respostas, que os sujeitos de pesquisa se satisfazem com sua atividade profissional, então não se trata simplesmente de uma representação, mas sim realmente de uma identificação com sua profissão.

Foram considerados insatisfatórios 27,8% dos itens, os quais estão relacionados principalmente com "remuneração", "premiações" e com a "possibilidade de crescimento na carreira militar". Pode-se pressupor certa falta de reconhecimento, fator este que afeta a identidade dos sujeitos, visto que o reconhecimento do outro é importante para a construção da identidade. Esse resultado está em conformidade com a pesquisa realizada pela Polícia Militar de Santa Catarina (1997), em que foi identificado que: "um dos agentes estressores mais significantes são as condições psicossociais do trabalho, o qual remete a falta de reconhecimento institucional, a inexistência de feedback dos serviços realizados, na falta de motivação." (p. 83).

Quando questionados sobre se o exercício da profissão modificou ou está modificando sua maneira de ser, 72,9% dos sujeitos de pesquisa responderam que sim. As formas de modificações que os sujeitos de pesquisa apontaram foram agrupadas em categorias e estão relacionadas com: responsabilidade não só durante a atividade profissional, mas também em toda sua vida (13,6%); satisfação em ajudar o próximo (11,3%); sentem-se mais "humanitários" e "compreensivos" com os problemas da sociedade (10,3%); maior valorização da vida (10,3%); ampliação não só do conhecimento técnico profissional, mas também do conhecimento para a vida (8,5%); melhora na comunicação (8,0%); aumento da disciplina (4,2%); insensibilidade devido ao fato de estarem constantemente em contato com muitos acidentes e ter que aprender a lidar com isso (3,8%).

Foi possível constatar que os sujeitos consideram que a insensibilidade, a rigidez e a disciplina extrapolam o ambiente profissional, estando presente também na vida pessoal. Em relação à disciplina e à rigidez, pode-se constatar que essas características, que inicialmente são exigidas pela organização, passam a fazer parte da vida do sujeito como um todo.

Ao apresentar reclamações sobre a organização, os sujeitos pontuaram mais uma vez a necessidade de acompanhamento psicológico. Exemplo10 10 Os exemplos citados mantiveram a resposta original dos sujeitos de pesquisa. : "A falta de acompanhamento psicológico me trouxe problemas em relação à convivência com os riscos diários".

Ficou evidente nas respostas que esses sujeitos realmente se identificam com sua profissão; eles fazem o que gostam e gostam do que fazem e assim se reconhecem nas atividades que realizam. Exemplo: "Cada serviço que trabalho me sinto melhor por poder ajudar o meu próximo".

Estes profissionais que trabalham constantemente com situações de risco, que todos os dias veem tragédias, mortes, afirmaram que passaram a valorizar mais a vida devido a tudo com o que convivem em sua profissão. Os sujeitos afirmam que convivem com tanta tragédia que valorizam cada detalhe da vida. Exemplo: "Pela forma de ver o amanhã preservando a vida, que para mim é a única coisa que vale a pena, somente estar vivo é fantástico".

Todas essas modificações relatadas pelos sujeitos são vividas e incorporadas por eles. E, para compreender a identidade, é necessário entendê-la como sendo a representação que o sujeito faz de si mesmo, que permite que seja reconhecido pelos outros; é o processo que faz ele se reconhecer como um sujeito no mundo, um sujeito singular.

Quando questionados sobre a existência ou não de uma interferência da atividade profissional na qualidade de vida, o resultado dos dados coletados ficou praticamente no mesmo nível, apresentando uma pequena tendência para considerar que não há interferência (50,6%). Teoricamente, conforme já pontuado, considera-se uma relação direta entre o trabalho e a qualidade de vida geral do sujeito. No entanto, quase a metade dos sujeitos de pesquisa afirmou que não há esta interferência. Entretanto, se observarmos o contexto geral das questões, e principalmente o fato deles considerarem na questão anterior que o exercício da profissão modificou ou está modificando sua forma de ser, é possível observar certa contradição apresentada pelos sujeitos nesta questão. Dessa forma, pela análise global, pode-se supor certa interferência da atividade profissional na qualidade de vida.

Os sujeitos que afirmaram existir interferência (49,4%) descreveram de que forma isso acontece, sendo que estas respostas foram agrupadas em categorias. Os sujeitos consideram que a atividade profissional interfere em sua qualidade de vida porque: o trabalho é a segunda casa (11,3%); há relação entre seu trabalho e sua vida pessoal (9,0%); há satisfação em ajudar o próximo (9,0%); há satisfação em exercer a profissão (9,0%); a remuneração é baixa (6,8%); há desânimo, esgotamento, estresse (6,8%); afetou a saúde física, para alguns proporcionando melhor condicionamento físico e para outros um grande desgaste físico (6,8%) e interfere no aspecto emocional (6,8%).

Também nessa questão o estresse e a insensibilidade foram mencionados como estando presentes também na vida pessoal. Sobre esses itens, pode-se citar a resposta de dois sujeitos: "Estresse é o maior problema entre minha vida e de minha família"; "Como eu já falei eu me tornei muito mais frio devido às ocorrências de acidentes deixa as pessoas frias insensíveis a alguma coisa que se vê fora do trabalho".

Ficou bastante evidente nas respostas a relação entre o trabalho e a vida pessoal. Quando os sujeitos afirmam que o trabalho é como uma segunda casa, eles pontuam que esse fato interfere no convívio familiar, pois muitas vezes trabalham em ocasiões em que toda a família está de folga, como, por exemplo, no feriado de final de ano e finais de semana. Também afirmam que o excesso de trabalho afeta o convívio familiar, a saúde (estresse, esgotamento etc.) e também a própria produtividade durante seu trabalho. Outro fator relevante é que os sujeitos afirmaram que a população civil, mesmo quando eles não estão em horário de trabalho, continua os vendo como militares e, devido a isso, se presume que lhes cobram o mesmo tipo de conduta.

Através da análise das respostas, pode-se supor que a identidade profissional desses sujeitos não se restringe ao ambiente profissional, ela também é exercida em sua vida pessoal, seja pela conduta, regras etc., ou seja, em muitos casos o papel profissional extrapola o ambiente militar. Também se constatou nas respostas que o conteúdo da profissão amplia-se para além do horário de trabalho; os sujeitos demonstram satisfação em ajudar o próximo não só durante sua atuação profissional.

Considerações finais

Com todos os dados colhidos nesta pesquisa, foi possível observar que os sujeitos de pesquisa consideram sua profissão perigosa e estressante, todavia gostam do que fazem, sentem-se realizados e orgulhosos de sua profissão.

Por meio da pesquisa foi possível compreender que, devido aos Bombeiros Militares conviverem cotidianamente com o risco, com situações de acidente e morte, a maioria demonstrou que a atividade profissional interfere em sua qualidade de vida e em seu modo de agir. Essa interferência provoca diversas mudanças no próprio sujeito, como, por exemplo, em seu comportamento, nos relacionamentos interpessoais e na forma de lidar com problemas. É possível exemplificar isso com as seguintes respostas dadas pelos sujeitos: "Criando uma rigidez na conduta mesmo nas relações familiares. Tornando-me insensível diante do 'joelhinho ralado' do meu filho (exemplo)"; "Se tornando mais sensível às coisas simples da vida, até como retornar para casa, mas se torna muito frio como pessoa pelo fato de pegar muita ocorrência de tragédias".

Comprovou-se que o sujeito deve ser compreendido enquanto totalidade, e que para compreender a identidade profissional é necessário compreender como o sujeito se percebe em seu papel profissional, como considera que é percebido e como esta atividade é relacionada com outros aspectos de sua vida. Percebe-se que essa identidade profissional de Bombeiro Militar ultrapassa os limites organizacionais e invade a vida pessoal do sujeito, demonstrando, assim, a importância de se compreender a identidade profissional não como uma parcela isolada do sujeito, mas sim como uma das facetas desse ser total.

Considerando que esses sujeitos, praticamente todos os dias, presenciam tragédias diversas, pode-se imaginar em que níveis são as interferências da atividade profissional em sua vida pessoal. Pode-se perceber que a realidade pesquisada corresponde com a teoria quando demonstra que o trabalho regula a vida do sujeito, tornando-se o centro das atenções. O trabalho é visto como primordial, pois é por meio dele que o sujeito consegue sustentar a si e a sua família, bem como adquirir bens materiais, estabelecer uma melhor qualidade de vida, ser bem visto e aceito pela sociedade. Exemplos: "Muitas vezes você é visto do lado de fora de outra forma e com outros olhos, o civil não esquece que você é militar"; "Pois se estiver feliz com o meu trabalho, isso repercute em todas as outras atividades"; "É o reflexo do seu serviço, você leva para seu dia a dia, fora do quartel".

Com todos os dados que confirmaram a interferência da atividade profissional na vida pessoal e social e dados sobre a autoimagem, foi possível comprovar, conforme as teorias apontam, que o trabalho é um dos fatores constituintes da identidade de um sujeito. Sendo assim, a atividade profissional se relaciona dialeticamente com as várias características do sujeito, seu modo de agir e lidar com problemas em sua vida.

Outro fator de influência é devido à organização ser pautada pela disciplina e hierarquia, pois o comportamento dos sujeitos deve seguir regras dentro desta organização, ou seja, o comportamento é padronizado. Essa padronização é esperada pela organização, visto que os sujeitos devem seguir os treinamentos ministrados. Contudo, o que se percebe é que há uma "invasão" do treinamento na vida pessoal do sujeito, ou seja, muitas vezes o comportamento se mantém padronizado mesmo fora do ambiente militar. Dessa forma, muitas vezes é possível perceber uma conduta estereotipada, ou seja, mesmo fora do horário de trabalho agem conforme as normas da organização militar; esses sujeitos vivem a profissão não só durante seu horário de trabalho, mas em toda sua vida.

Foi possível perceber que o risco, juntamente com a estrutura organizacional (hierarquia, disciplina, normas), aponta para o surgimento de condições de estresse nos sujeitos. Consequentemente, os mesmos demonstraram que possuem o desejo de discutir sobre os fatos que ocorrem em seu ambiente de trabalho para evitar que a atividade profissional interfira negativamente na vida pessoal e social. Eles consideram que esses debates poderiam ser realizados entre os próprios colegas de trabalho, desde que conduzidos de maneira mais estruturada, formalizada.

Também citaram a possibilidade desses debates ou atividade semelhante serem realizados por um profissional especializado (18,9%), que prioritariamente seria o psicólogo, o qual os ajudaria a lidar com as dificuldades que surgem durante sua atuação e a consequente interferência na vida pessoal e social.

Quando os sujeitos apontaram a necessidade de se realizar alguma atividade para discutir as ocorrências, ficou evidente a preocupação com os possíveis erros durante sua atuação. Por meio da análise das definições legais das atividades que devem ser exercidas pelo Corpo de Bombeiros, em que esse profissional tem um papel social de segurança pública, percebe-se que em várias atividades ele coloca sua vida em risco para salvar a vida e/ou bens de outra pessoa. Pode-se inferir um alto grau de "cobrança" pela excelência de seu trabalho, uma vez que uma falha pode significar a perda de uma vida. Assim sendo, além de trabalhar em situação de risco, também lhe é acrescida uma situação de pressão (no sentido de que não lhe é permitido falhar) em que os próprios profissionais se apropriam desse ideal.

Em relação às reclamações realizadas, ficou evidente que os Bombeiros Militares se queixam de questões organizacionais, aspectos burocráticos e falta de condições de exercer sua profissão, mas em nenhum momento reclamavam do conteúdo desta, ou seja, do seu fazer profissional. Pelo contrário, quando falavam sobre o conteúdo de sua profissão, era visível a satisfação e o orgulho desses profissionais.

Cabe ao pesquisador da área da Psicologia abranger as pesquisas na área das "profissões de risco", visto que nestas a questão do sofrimento psíquico é notória, pois os profissionais estão constantemente em contato com tragédias e situações de risco, em que até, algumas vezes, arriscam a sua própria vida. Assim, pode-se falar de vidas em risco duplamente, uma vez que o profissional põe a sua vida em risco para socorrer a vida em risco de outros.

Sugere-se, por fim, que se elaborem formas de intervenções para evitar que esses profissionais sofram psiquicamente no trabalho e que isso ou outros problemas que venham a se apresentar interfiram negativamente na vida pessoal e social deles, pois, como o sujeito é uma totalidade, isso consequentemente interferirá também na produtividade e na qualidade de seu trabalho dentro da organização.

Lembrando o que Dejours afirma, que "é preciso entender o que se passa no trabalho para entender o que se passa na sociedade" (1999, p.12), esta pesquisa se propôs a entender um pouco sobre esse profissional, tão caro à sociedade, e com isso ampliar o conhecimento da questão da identidade profissional no campo da Psicologia.

Foi gratificante e estimulante realizar esta pesquisa, visto que em Psicologia devemos entender o sujeito sempre em sua totalidade, e parece-nos que o caso estudado nesta pesquisa demonstra-nos de forma exemplar como o trabalho "invade" a nossa vida como um todo.

Notas

Recebido em: 10/02/2008

Revisão em: 10/11/2008

Aceite final em: 17/04/2009

Michelle Regina da Natividade é Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente da Universidade do Sul de Santa Catarina no Curso de Graduação em Psicologia. Endereço para correspondência: Universidade do Sul de Santa Catarina, Curso de Psicologia. Av. Pedra Branca, 25 - Cidade Universitária Pedra Branca, Palhoça, SC. CEP: 88132000. Email: michelleregina@gmail.com

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  • Vieira, E. M. (1997). Perfil profissiográfico do soldado PM/BM. Trabalho de Conclusão de Curso, Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais (CAO) / PMSC, Florianópolis, SC.
  • 1
    É importante ressaltar que na ocasião da realização da pesquisa o Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina era vinculado à Polícia Militar. A partir de 2003, com a Emenda Constitucional n. 033 (Santa Catarina, 2003), o Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina passa a ser considerado uma organização independente e, junto da Polícia Militar, a constituir o grupo de Militares Estaduais.
  • 2
    Na ocasião da pesquisa, o artigo 107, inciso II, da Lei em vigor definia as seguintes atribuições: "a) realizar os serviços de prevenção de sinistros, de combate a incêndio e de busca e salvamento de pessoas e bens; b) analisar, previamente, os projetos de segurança contra incêndio em edificações e contra sinistros em áreas de risco, acompanhar e fiscalizar sua execução e impor sanções administrativas estabelecidas em lei." (Santa Catarina, 1997, p. 102).
  • 3
    Isto porque, segundo Jacques, "O nome próprio é uma representação da identidade precocemente adquirida a partir da forma como os outros nos chamam, e, portanto, pelo seu caráter restritivo não dá conta da identidade" (2001, p. 165). Segundo Ciampa, o nome próprio indica a singularidade do sujeito. "nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam" (1997, p. 63), ou seja, precisa-se do outro na constituição da identidade.
  • 4
    Considerando esse posicionamento, esta pesquisa não investigou a faceta "como os outros me percebem", ou seja, não se investigou a significação de outros sujeitos sobre esse profissional Bombeiro Militar.
  • 5
    Esta margem de erro permitiu que nas conclusões os resultados da pesquisa fossem generalizados a toda a população.
  • 6
    As pesquisas de Vieira (1997), Campos (1999) e Alegria (1999/2000) contribuíram para a elaboração do questionário.
  • 7
    Dá uma identidade no sentido de que fornece uma singularidade, e não que represente toda sua identidade, conforme Martin-Baró (1985), Jacques (2001) e Ciampa (1997).
  • 8
    O atendimento pré-hospitalar não está bem definido na Constituição do Estado de Santa Catarina; já na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, 2002), este item aparece como função dos sargentos e subtenentes do corpo de bombeiros militar.
  • 9
    As definições das atividades dos Bombeiros Militares por meio da Classificação Brasileira de Ocupações só foram inseridas na pesquisa após a aplicação dos questionários, visto que a edição anterior da CBO não incluía a descrição de profissões militares.
  • 10
    Os exemplos citados mantiveram a resposta original dos sujeitos de pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      17 Abr 2009
    • Revisado
      10 Nov 2008
    • Recebido
      10 Fev 2008
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